2006/05/23

O Meu primeiro "Derby" em Alvalade

Naquela noite, Alvalade dava a imagem das imediações de um circo Romano em dia de combate de gladiadores. O estádio estava a rebentar pelas costuras. O folclore da semana transferira-se para aquela zona da cidade e dentro daquele Coliseu dos tempos modernos, há muito que tinham começado os habituais mimos e “jogos florais” entre as claques de Sporting e Benfica. O cheiro das bifanas, coiratos, tabaco e maconha, embrenhados na roupa, misturavam-se com o colorido das cores dos clubes em disputa, enquanto milhares de almas, muitas delas toldadas pela cerveja consumida às litradas, procuravam a porta de acesso ao interior da arena, torneando os grupos de comentadores de ocasião, histórias visionárias acerca do resultado final, candongueiros, carteiristas e borlistas de ocasião. A visão deste ambiente não era para mim novidade. Não era a primeira vez que visitava o Estádio José de Alvalade e o ambiente não me era de todo desconhecido. Mas, ao contrário das visitas anteriores, esta era a primeira vez que ia a um jogo de futebol como agente de polícia, enquadrado num policiamento desportivo. Era o meu primeiro serviço de piquete na Divisão e como tal, estava afastado das escalas de remunerado, passando assim a integrar as secções destinadas a reforçar os acessos e posteriormente a reforçar o interior do recinto, prontos para acorrer a alterações graves da ordem.

Já estavam decorridos alguns minutos do início da partida quando o subchefe, comandante da secção, recebeu ordens para que nos dispuséssemos no interior do recinto, ao longo das vedações do topo sul do estádio. Pela primeira vez na minha vida a minha visão do interior de um grande jogo, ia ter uma perspectiva do relvado para a assistência e não ao contrário, como estava habituado. Se a imagem, em dias de jogos importantes, é por demais impressionante, com todo o clima gerado em volta de um acontecimento desportivo, a visão dali, a partir do relvado, faz com que nos sintamos pequeninos. Compreendi de imediato, de onde advinha aquela sensação de grandiosidade, quase impunidade que se sente, quando se está no meio daquela mole imensa de gente em relação aos minúsculos intervenientes no espectáculo que deambulam pelo recinto de jogo e área limítrofe. Só de olhar impressiona. Ali, bem à minha frente, encontravam-se uns milhares de furiosos adeptos, que há minha entrada me presentearam, juntamente com os meus camaradas, com uma monumental assobiadela, secundada de uma série de impropérios, insultos e ameaças, em tom de desafio e desfolhando um autêntico mostruário de gestos obscenos que iam da clássica representação fálica com o dedo às mais arrojadas referências a actos de sodomia, algumas com exibição dos atributos genitais. Animais, pensei eu para os meus botões; mas tinha que manter a calma e deixar pedidos de explicações para segundas núpcias. A ordem era clara. Não perder de vista o que se passava dentro das bancadas e evitar a todo o custo a tentação de apreciar a evolução dos jogadores em campo, sob pena de ser vítima de agressão e para controlar os mais atrevidos, evitando tentativas de invasão de campo ou detectar escaramuças entre a assistência.

À meia hora de jogo, já o terreno junto a mim estava pejado de todo o tipo de objectos possíveis e imagináveis. O espólio depositado na pista de tartan ia do mais banal dos isqueiros descartáveis aos mais variados tipos de rádio-transístores (melhor, o que deles sobrava), passando por uma variedade de peças de fruta, que dariam, passo o exagero, para fornecer a cantina dos sem-abrigo dos Anjos por várias semanas, garrafas de água, algumas com o resultado da destilação de bexigas mais aflitas, guarda-chuvas, etc. etc. Felizmente que entre estes “atletas”, dignos de helénicos discóbolos, esses atributos não se aplicavam a outro tipo de lançamentos, de cariz mais nojento, que se ficavam a meio caminho nas suas curtas trajectórias entre a boca e o ponto onde nos encontrávamos. Talvez com um caroço de abrunho ou ameixa fossem mais eficazes, mas essas munições, destinavam-se a fazer lastro aos frutos arremessados manualmente. Quanto ao restante do espectáculo, já que mal dava para espreitar a jogatina, ia apreciando o ambiente que se desenvolvia em redor. As caras transfiguradas a cada jogada perdida, os gritos a cada golo falhado, ondeavam pela massa adepta, ondeada a cada instante pelos chorrilhos decadentes e do mais baixo pasquim dirigidos em especial aos árbitros, jogadores e claro, aos adeptos adversários. Muito bem, assim, já não era o único a ser presenteado com tão graves espinhos à minha “entrada em campo". O ambiente era de inferno, um ensurdecedor inferno. A batalha estava no auge.

- Então pá, está tudo bem? – perguntou aos berros o subchefe, apercebendo-se da minha surpresa perante o espectáculo.

- Porra, esta merda mete medo, chefe!... Se saem dali para fora, aqueles tipos vão dar um trabalho do caraças!!... - gritei eu.

- Reza para que não saiam... reza...

O árbitro apitou para o descanso...



Recomeçou a partida. Lagartos e Lampiões, mimavam-se com os pregões e gritos de guerra do costume, arrancando sorrisos entre a assistência e mesmo entre os polícias, que não perdiam a oportunidade de dar uma bicada na preferência clubista do camarada do lado. O Nogueira, rapaz do Marco de Canavezes, indefectível benfiquista, já me tinha lançado umas farpas e eu ia-lhe respondendo com umas bordadas dignas de leão, quando a nossa disputa verbal foi interrompida pelo comandante da força, informando que poderíamos ir comer algo assim que chegassem os agentes que já tinham ido fazê-lo. Agradecemos e aguardámos a sua chegada, para podermos aquecer a fornalha, que já pedia combustível. Enquanto vinham e não vinham, observávamos um colega, que de forma insistente se baixava e esfregava os gémeos. Era o nosso “sindicalista” – à data, ainda não havia liberdade sindical, nem mesmo associativa na PSP – um veterano na casa dos cinquenta e muitos anos, grande lutador, desde a primeira hora, dos direitos socioprofissionais dos polícias e precursor das primeiras lutas da classe em prol da causa e que além da alcunha de “sindicalista” era mui respeitosamente designado por “velhote”.

- O velhote anda mesmo nas últimas. É triste, com uma idade destas ainda se arrasta pelo piquete e na a bola! – disse o Nogueira em tom indignado.

- Sabes que a contestação, a maioria das vezes paga-se cara, cá na casa – respondi continuando – não sei porque não faz uma exposição ao comando a comunicar a situação; com esta idade já deveria andar mais resguardado. Mas parece que anda aqui por gosto, mesmo sem poder…

- Sacanice é o que é. Repara, já não deve poder com as pernas. Não pára de se baixar e mexer nos tornozelos e ninguém vê estas coisas, ou melhor, vêem mas estão-se nas tintas. Claro que o homem podia dar menos nas vistas. Em vez de circular no perímetro, insiste em andar ali, em círculos, ao alcance dos gajos da Juveleo. Não tarda nada, cai-lhe o gradeamento em cima ou sujeita-se a levar com um pêro!

Estávamos nós nesta conversa, e chegou a ordem:

- Quinze minutos, meus senhores – gritou o subchefe – nem mais um segundo.

Lá fomos nós, cinco agentes esfomeados a caminho da carripana das bifanas do Mário. O “sindicalista” foi connosco.

- Já aperta a fomeca, não!? - aventei eu.

- Já comia um boi; estes filhos da mãe não se calam! Logo eu que não gramo esta gaita nem um bocadinho! Andam para aqui a ganhar fortunas e a maioria desta gente toda a tinir sem cheta. O mais bonito é que aplaudem! Vão gozar com outro, valha-me Deus! Mas há pior. Vamos mas é à bifana…

- Deixe lá, não adianta esse protesto. Eles não lhe pagam o jantar, eh, eh, eh! – atiçou Nogueira; este sabia que o velhote, embora lhe fossem reconhecidos vários valores morais e rectidão, chorava cada tostão que gastava, em especial na hora de serviço.

- Estes cabrões vão pagar isto muito caro. – replicou o Sindicalista olhando pelo canto do olho para a claque em polvorosa que nos apupava e tentava atingir com mais uma variedade de objectos – até as bifanas, sacanas - terminou entre dentes.

- Ora esqueça isso, agora vamos comer, que já falta pouco. A propósito, essas pernas estão firmes?

- Como o aço, colega, como o aço…

Chegados à carrinha do Mário, onde num ápice, cada um devorou a sua bifana regada com sumo (para não parecer mal), quando nos dispúnhamos pagar a despesa, eis que o velhote, tira a mão ao bolso cheia de moedas de 50 e 100 escudos e dirigindo-se ao empregado do tasco ambulante diz-lhe:

- Pague a despesa toda daqui.

- Só paga as bifanas, “Sô” Guarda. As bebidas, o patrão oferece… é regra da casa.

- Nada disso. Pague tudo daí, que faço questão; fica para a próxima – voltou o velho.

De nada adiantou dizer-lhe para não fazer aquilo, que a vida custa a todos, etc., mas o homem insistiu de tal forma, que nos vimos obrigados a aceitar. Pelo menos ficava o alívio de não ter feito o choradinho para as bifanas serem oferecidas!

Tínhamos acabado de regressar ao local de serviço e já o nosso sindicalista tomava de novo o seu posto, não tardando a retomar o estranho exercício de acariciar os gémeos. Ou o velho fazia ronha ou então, dava-se melhor com as caminhadas, coitado. Aproximei-me dele e tentei moralizá-lo:

- Calma, não tarda nada, isto acaba. Não deve demorar e vamos embora descansar as pernas. As minhas também já estão a dar sinal.

O sindicalista olhou-me com cara admirada.

- Não me diga, que o Cruz já está derreado com uma idade dessas?

- Não é bem isso. Estou mais com falta de paciência para estar aqui a levar com estes tipos. Preferia estar ali, na parte de cima.

- Qual quê! Aqui é que é bom, rapaz. É melhor aqui… além disso, ainda tem muitos jogos pela frente, por isso vá-se preparando... e sempre tem a vantagem de comer uma bifaninha à borla, que quer mais?

- Ora, já agora, não faltava mais nada! Agradeço a bifana, mas para a próxima paga a malta.

- Paga lá agora. Enquanto vier à bola, quem está de piquete com o velho, não precisa de trazer guita para o jantar! – riu-se ele.

- Eh, pá! Saiu-lhe o totoloto, ou quê? A vida custa a todos. Você não tem de andar para aí a pagar bifanas aos colegas…

- Quem lhe disse a si que fui eu quem pagou?

- Eu vi-o pagar – ou estava a gozar comigo, ou o velho estava a passar-se da cabeça, pensei.

- Nada disso! Isso pensa você! – tornou enquanto pela enésima vez se baixava. Afagou languidamente o gémeo da perna direita, prolongou um pouco mais o gesto da mão em direcção ao tartan da pista, apanhou algo do solo – Aos anos que não gasto um tostão na bola, desde que esteja de piquete e venha para o topo sul. Nem eu nem os colegas que estão comigo… então nos jogos grandes, é uma maravilha.

- Bolas, está visto, você é um benemérito – gracejei.

- Nada disso seu maçarico! – abriu a palma da mão, mostrando-me uma moeda de 50 escudos; era o objecto que segundos antes tinha apanhado do solo – a bicharada aí atrás, encarrega-se disso. Pena que não enviem mais das de duzentos paus.

1 comentário:

APinto disse...

Caro Colega
Pela extraordinária lucidez do relato não resisti `tentação de colocar uma menção no meu blog. Peço que me desculpes.
E já agora, continua a prestar este serviço, nós agradecemos.