2007/10/24

Ratices…

22H00. O som seco do besouro do velho PBX com caixa de madeira cor de mel avisa que alguém liga para a Esquadra a partir de uma linha externa.
- É da Esquadra?
- Muito boa noite; Esquadra do Rato, Largo do Rato, fala Rato, faça favor de dizer – atende o graduado de serviço, de uma forma cordial, cadenciada (quase cantada) e automática.
- Deixe-se de brincadeiras e passe-me ao chefe – replica do outro lado alguém, de voz arrogante, azeda e com aquele toque habitual naqueles que se julgam encontrarem-se no topo da pirâmide da sociedade.
- Certo meu caro senhor. Faça o favor de dizer; Esquadra do Rato, Largo do Rato, fala Rato – repete o homem que aquela hora representava a máxima autoridade de comando da esquadra.
Do outro lado da linha, notava-se, pela quantidade de grunhidos e impropérios, que havia ali uma falta de comunicação grave e tal não acontecia certamente por causa de algum problema técnico na linha – Oiça lá… “tá” a gozar com quem?
- Eu?! Gozar? Olhe, não entendo!!...
- Mau! De onde fala?
- Esquadra do Rato, Largo do Rato, fala Rato…
- Ai! Queres festa, queres, ai queres… queres! – Desabafou em sussurro enfastiado o irascível interlocutor - Eu não estou a gozar… faça favor quero falar com o chefe imediatamente, não quero mais conversas consigo, antes que isto azede.
- Faça favor, fala Rato…
- Rato? “Tás” a chamar-me rato? Olha lá, oh! Seu palhaço, estás a gozar com quem seu mal-educado? Vou já dizer-te quem é rato, oh seu ignorante. Que vergonha, fala-se para uma esquadra de polícia e atendem garotos que pensam que são mais espertos que os outros… já vais ver com quem te meteste, seu esperto. Vais ficar sem farda antes de saíres de serviço, seu… seu… já te digo!...
- Estou? Está lá? Esquadra do Rato, Largo do Rato, fala Rato… Olha, desligou! Ele há com cada maluco!
- Que se passa?! Caiu-lhe mal o jantar, Eh! Eh! – O Guarda-Principal Pereira não perdia nunca a oportunidade de brincar com o Rato.
-Não, não podia ter caído, porque ainda não acabei. Acabou de ligar para aí um tipo que, além de mal disposto, tem a mania que despe a farda à bófia!
- Quê? Mas, que queria ele?
- Sei lá, ligou pela externa, nem boa noite disse, perguntou se era da esquadra e depois, começou com uma conversa qualquer, que ainda não entendi; muito menos o que queria.
- Mau, mas, entrou assim a “matar”?
- Oh pá! O Gajo só queria falar com o chefe, não queria falar mais comigo, etc., etc.
- Algum mal disposto, com toda a certeza. Se precisar mesmo, volta a ligar. Anda, vai lá acabar de comer, que seguro aqui as pontas. Só recomeço a ronda daqui a meia hora.
- Obrigado, pá. Olha, as circulares já chegaram. Se houver alguma queixa, se não for nada de urgente, eu recebo assim que acabar.
Nem cinco minutos estavam decorridos e eis que, furibundo e com ar esgazeado, entra um indivíduo, já com idade para ter mais calma (e juízo, porque não?), que, ignorando o sentinela à porta da esquadra, se dirige ao guichet de atendimento e “dispara” com maus modos na direcção do Guarda Pereira:
- Quero apresentar duas queixas…
- Ora, muito boa noite, sou o Agente Pereira. O graduado de serviço está só a acabar de jantar, ele já lhe recebe a queixa. Antes de mais, diga-me, é grave? Que se passou? Tenha calma homem, está muito irritado. O que se passa e onde, que mando já passar lá uma patrulha!
- É contra os gajos do andar de cima, não param com a música em altos berros. Mas antes, quero queixar-me de um guarda daqui, que me atendeu o telefone… o quê, a jantar!? Então está um tipo aflito, e os senhores jantam? Francamente! Não bastava o outro a gozar comigo ao telefone, ainda tenho de ouvir coisas destas! Ah! Mas o tipo fica sem farda, ai, isso fica!
- Tenha calma e conte-me o que se passou – o Pereira, era perito em gerir conflitos e o seu estômago não azedava com facilidade – quem lhe atendeu o telefone e o que lhe disseram?
O desbocado homem, contou a sua história e o Pereira, ouviu atentamente e à medida que se ia apercebendo do sucedido, a sua expressão facial transformou-se de um inexpressivo olhar, para um sorriso de gozo.
- Está a achar piada? Se calhar foi o Senhor, não?
- Não, não fui, mas olhe, esse problema, ultrapassa as minhas competências, acho que vai mesmo de ter de falar com o chefe.
Alertado pelo chinfrim que o homem fazia, o Rato, dirige-se ao Hall de entrada da esquadra e colocando-se frente a frente com o irritado cidadão, olhando-o com uma calma burilada pelos muitos anos de experiência, interroga-o:
- Ora boa noite… Então, que se passa?
- Que se passa? É o Chefe?
- Sou, diga lá, o que o apoquenta?
O homem, conta o sucedido mais uma vez, tim-tim por tim-tim, sem se furtar a quaisquer pormenores e a meio da estória, já ao cívico passava, na sua mente, o epílogo do relato.
- Hummm! Pois, e agora? – Inquiriu o polícia.
- Agora, vai queixa contra o guarda. A mim ninguém goza, muito menos um analfabeto qualquer que pensa que vem lá da santa terrinha a brincar com os de cá! Nem ele sabe com quem se meteu! Veja lá que o tipo, chamou-me rato. Só dizia, “fala, rato”. Que vergonha! Nunca fui tão insultado!
- Calma, não lhe vai bater, pois não? – Atirou-lhe em tom sarcástico o Rato.
- Basta um telefonema e fica sem farda, antes de sair de serviço, ou julga o quê?
- Ah! Muito bem, então, quem fará isso? O senhor? Se quiser pode começar, mas talvez queira fazê-lo ali dentro, no vestiário, isto é, se conseguir. Aqui, além de estar muito frio, há muita gente e sou algo envergonhado, sabe. Parece mal e além disso, sempre vou vestindo a roupa civil.
- Quê? Como? – O tipo olha então para a placa de identificação ao peito do Cívico. Fica lívido, perde o pio e fica a abrir a boca como um peixe fora de água.
- Já agora, qual a sua graça, por favor – estendendo a mão ao outro, o Rato, apresenta-se – Subchefe Rato… simplesmente Rato para os amigos e para aqueles que vêm por bem.
- Eu… eu… bem, venho por cá noutro dia, que lembrei-me que tenho outras coisas para fazer.
- Estamos abertos 24 horas por dia, 365 dias por ano. Tem seis meses para formalizar queixa. Ah! E já agora, tenha uma muito boa noite.