2006/05/23

A PISTOLA

Li na revista Sábado de algumas semanas atrás, um artigo acerca do fim, acredito que temporário, da imagem que nos habituámos a ver do polícia londrino como defensor da ordem, desarmado. O mito não morreu após os atentados de Londres, mas há muito que os Bobbies não são esses cívicos desarmados que tão apontados são como exemplo a seguir nos restantes países ocidentais. Só quem esteja totalmente desfasado da realidade que encerra uma metrópole de 10 milhões de habitantes poderia pensar que a capital britânica é um paraíso. Pelo contrário, a bela capital britânica é uma das cidades onde se registam grandes índices de criminalidade, alguma bem violenta. O crescente aumento desta criminalidade levou a que as autoridades tomassem uma série de medidas preventivas que vão da vídeo vigilância em tempo real aos vigilantes cívicos, civis que desenvolvem trabalho de informação e vigilância nas ruas da cidade sem contudo possuírem autoridade de polícia; digamos que são uma espécie de stweards dos estádios de futebol que patrulham a ruas, sempre supervisionados por um agente da Metropolice. À primeira vista poderão parecer agentes policiais, mas quando confrontados com situações que impõem aplicação de medidas de polícia, logo surgem uma ou mais patrulhas. As forças de reacção/intervenção rápida estão prontas para a acção ao mais mínimo sinal de criminalidade ou ocorrências potencialmente violentas, que incluem elementos fardados e à civil, armados. Há mesmo zonas, desde meados da década de 80, em que os Bobbies transportam armas de fogo ou noutros casos aquilo que é conhecido como armamento menos letal (gás C-4, pimenta, etc.) mas sempre dissimulados debaixo dos seus casacos, ou seja, nunca à vista do cidadão. É precisamente acerca de armas escondidas que hoje vos conto este episódio.

Há cerca de 18 anos, tinha eu acabado de ingressar nos quadros da PSP e, como a maioria dos novos agentes, fui colocado em Lisboa, mais concretamente no então problemático e complicado Bairro da Serafina que incluía os Bairros da Liberdade, Casal da Sola, Quinta do Zé Pinto, Tarujo, Vila Ferro, entre os mais conhecidos. Claro que havia pouca vontade de ser colocado ali, onde as “praxadelas” aos novos cívicos não se cingiam ao interior das paredes da Esquadra, mas eram praticadas, embora mais dissimuladamente, claro, por muitos dos habitantes que aceitavam a presença da polícia de forma natural. Era uma forma de receberem os novos polícias no seio da grande família que é o Bairro e desta forma testar desde logo a fibra da nova rapaziada. Desde os primeiros dias pude compreender a velha máxima que faz chocar a teoria com a prática, ou seja como se deve fazer segundo os livros e como se faz na realidade. Sempre que tínhamos um tempo livre, deixava-se aquela “ilha” plantada no meio da cidade e partíamos à descoberta da urbe. Numa dessas idas, tínhamos acabado de receber as nossas armas individuais, descobrimos quanto se torna incómodo transportar aquele engenho de metal frio e relativamente pesado. Só o tempo torna o gesto de dissimular uma pistola num coldre interior e fazer do acto uma rotina, um hábito comum ao longo da vida.
Fomos em grupo até à Praça de Espanha. O Castro queria comprar um auto-rádio e os indianos da feira ali instalada faziam uns preços mais acessíveis que a maioria dos estabelecimentos. O incómodo e a sensação que provocava trazer ali o “ferro”, era o de estar constantemente a ser observados. Quem estivesse mais atento, julgaria alguns de nós como sendo mais um desses jovens com tendências sexuais distorcidas, já que estavam sempre a olhar para os camaradas, tentando ver se era visível algum vulto comprometedor; claro que o atento observador via os olhares dirigidos a uma zona para a qual um homem habitualmente não olha noutro homem.

Andávamos então em negociata pelas várias bancas lá do sítio, quando oiço uma criança que reclama algo da sua mãe. Ao início, não liguei mas depressa percebi o que o puto, que não tinha mais de 6 anos, repetia várias vezes a palavra pistola. A mãe, uma mãe igual a todas as outras mães, ignorava os pedidos insistentes do petiz com a velha técnica de ignorar o mesmo, rebuscando distraidamente uma série de bugigangas pelas quais não teria qualquer interesse e proferindo considerandos acerca da inutilidade da maioria dos artigos expostos.

- Mãe… mamã!!... – Torna o puto.

- Larga-me, chato. Acha que isto vale o dinheiro? Para que serve aquilo?... – Continuava a mãe na técnica dissuasória, indiferente à insistência do rebento.

- Mãe… a pistola!... – Continuou a jovem “melga” agarrando-se à fralda da camisa da mãe, puxando-a pela enésima vez.

-Cala-te, já te disse, não te compro nada, muito menos pistolas; olha-me este agora, ora querem lá ver!!!...

O Puto não desistiu, continuou a sua desigual luta, os olhos já a lacrimejar. Adivinhava-se uma daquelas irritantes birras de criança, chave da realização dos desejos de muitas crianças, o que regra geral encontra como defesa dos papás a pior defesa que se pode fazer: aceder ao desejo. Mas aquela mãe, era de ferro; uma negociadora de gancho. Não se deixou ir em pressões e tudo aquilo que o jovem conseguiu foi sentir uma valente palmada no traseiro, que felizmente não despoletou aqueles gritos que nos ferem os tímpanos (e esgotam a paciência). Remédio santo. Calou-se, embora se notasse, pelo tremelicar dos lábios e pelos olhos rasos de lágrimas que a coisa não ficaria por ali.

-Voltas a repetir a palavra pistola e levas uma tareia, mesmo aqui, em frente de toda a gente.

Que exagero, pensei. Não me recordo de muitas, mas reconheço a minha cobardia em não ter juntado a minha voz ao fedelho, em sinal de solidariedade para com posições idênticas por mim tidas no meu passado pueril. Traidor…sim, traidor, porque o puto olhava-me com um misto de pedido de auxílio e temor. Foi então que tudo se precipitou. O miúdo, levantou o braço, esticou o indicador, ensaiou mais um puxão na camisa materna e acusou:
- Pistola… ali, a pistola.

- Zás!... - Desta vez, não foi nos nadegueiros; era de prever. Foi mesmo na inocente face. A mãe, desesperada (ou ferida na sua incapacidade para impor a autoridade), assentou-lhe um tabefe, agarrou a criança pelo braço e arrastou-o aplicando-lhe um correctivo dos antigos. O infeliz continuava a repetir a malfadada palavra enquanto mantinha o indicador a apontar para o quiosque. Olhei e não vi no escaparate, pistola alguma; Perante a insistência daquele oprimido, enquanto se afastava o quadro de repressão familiar, refiz mentalmente novo segmento de recta entre o dedo e o destino do seu desejo e eis que se fez luz! Afinal, o puto tinha razão. O puto era bem o espelho da infelicidade dos que têm razão e são incompreendidos, calados na sua voz, cerceados da sua opinião… perante evidências, que só um cego não vê ou quem se julga soberano na sua autoridade teima em não ver. Ligeiro, aproximei-me do Castro que esticava os braços, tentando indicar um aparelho de que gostara e segredei-lhe ao ouvido:

- Pá, atenção!... Baixa a fralda da camisa. Tens o canhão a ver-se.

Coitado do ganapo!...


Pedagogia Policial I - Mestre Marques



No que ao trânsito respeita, nunca conheci alguém com uma postura tão radical e cumpridora como o Guarda Marques. Polícia por vocação, filho de um antigo agente da PVT, desde que ingressou na PSP nunca desenvolveu outra actividade que não fosse a de motorista de Carros Patrulha (CP). Era dos mais antigos motoristas do Comando de Lisboa e exercia essa actividade com prazer e dedicação, cumprindo escrupulosamente as regras. Aprendi muito com este decano dos motoristas e rapidamente passei a tratá-lo pelo nome que carinhosamente era conhecido e respeitado: Mestre Marques. Apesar dos cursos e instrução específica de condução de veículos policiais ministrados no seio da Corporação, muito daquilo que sei sobre esta actividade, aprendi com este camarada. Além de todos os predicados que lhe eram reconhecidos, Mestre Marques era um Guarda que gostava de participar nas ocorrências às quais a sua equipa era chamada a intervir, não se limitando à condução e guarda do CP. Claro que, onde se sentia mais à vontade era quando as ocorrências eram relacionadas com questões de circulação rodoviária. Aí, Mestre Marques, quase sempre aliava a sua capacidade de julgamento aos conhecimentos acerca da matéria exercendo o poder da autoridade de forma justa, pedagógica e muito... personalizada. É disso exemplo o que relato a seguir.

As coisas estavam complicadas para quem tinha de circular em Benfica. Era hora de ponta e chovia a cântaros. A noite aproximava-se arrastando as nuvens cinza chumbo que se abatiam em forma de chuva sobre a populaça apanhada à saída do trabalho. Os veículos circulavam em “modo lesma” e aconselhava-se máxima prudência na condução.

-Estamos aqui vai para 10 minutos e nunca mais chegamos ao Cemitério. Isto está bonito, está! – disse Vilela que estava ao comando do 24.08.

- Se não bateram nos Arneiros, deve estar algum “inteligente” estacionado em segunda fila, ou coisa que o valha – respondeu Mestre Marques.

Eu, sentado atrás dele, iria rendê-lo no turno de condução seguinte e dava graças por quando chegasse essa hora já não teria de andar a rodar o volante do pesado Ford-Sierra, ao qual por motivos de falta de verba, tinha sido removido o sistema de direcção assistida. Finalmente as coisas compuseram-se. O trânsito começou a fluir e fomos informados mais adiante, por um patrulheiro, que a confusão se instalara devido a uma família de ciganos que contendia com os condutores que protestavam pelo facto de os primeiros estarem sempre a parar a meio da passadeira, não se decidindo e permanecendo ali a conversar uns com os outros. Marques continuou por entre o limbo de escuridão, automóveis e peões com a mestria e perícia de piloto de barra do Tejo em plena tempestade. Quando chegou a hora de o substituir, o Mestre pediu que o levássemos junto do seu automóvel, estacionado no Bairro do Charquinho. A circulação era agora mais fluida. Quando ia iniciar a subida da Estrada dos Arneiros, deparei-me com um indivíduo já de certa idade, com uma criança ao colo e outra pela mão, parados sobre a passagem de peões. Parei para lhe ceder a passagem e o indivíduo avançou alguns passos ao longo da passadeira estacando de seguida mesmo em frente ao CP. Aguardei que continuasse, mas o homem não se decidia a tal coisa, antes voltou-se para trás e pôs-se a discutir com a mulher e outros membros do seu clã cigano. Fiz-lhe sinal de luzes ao mesmo tempo que, com um gesto o convidava a continuar o atravessamento. O patriarca não só ignorou o meu apelo como ainda não arredou pé.

- O tipo é burro ou então está a gozar connosco – ouvi Mestre Marques, que seguia atrás de mim.

- Ou passa ou então volte para o passeio – disse o Valente que seguia no comando do CP.

Por parte dos ciganitos, nem um “ai”. O Patriarca continuou a sua prosa com os outros e não arredava pé. Predispus-me a continuar a marcha e por isso, contornei-o devagar e continuei. Já ia começar a acelerar o veículo quando ouvimos atrás de nós um derrapar de pneumáticos no asfalto molhado, abafado por uma buzinadela. Olhámos para trás e vimos que fora o cigano que fizera o mesmo com o condutor que nos precedia. Logo o clã começou a gritar insultos e desaforos para com o pobre condutor. Definitivamente estavam ali para gozar o “pagode” e só poderia ser a “seita” de que o patrulheiro nos alertara nessa tarde.

- Pare o carro, Cruz – pediu Marques – deixem-se estar aqui dentro que eu já volto.

O Marques saiu do CP e dirigiu-se ao grupo de brincalhões. Estes ao vê-lo aproximar-se mantiveram um ar de desafio. Iria ele multar aquela gente toda?

- Há problema, Sr. Guarda?!... – atirou arrogantemente o patriarca.

- Deixará de haver quando passarem para o outro lado.

- Ai, Sr Guarda… mas quem lhe disse a si que queremos passar para o lado de lá?!...

- Pouca conversa. Não sabe que está a atrapalhar a circulação? Pare de gozar com as pessoas ou ainda alguém se magoa.

- Sabia lá a gente dessas coisas – continuou o velho, deliciado com a situação – a gente não aprendeu essas coisas; ninguém nos disse nada das passadeiras. A gente passa onde quer e eles só têm de parar.

- Pois, vai passar, a bem ou a mal passa você e passam os outros todos – o Mestre acabara de lhe agarrar a orelha direita – e vêm atrás de si, senão vai orelha a orelha.

Enquanto dizia isto, já se aproximava do outro lado da Estrada, com o cigano atrelado pela orelha e, para estupefacção geral, este nem tentara resistir.

- Como é? Vocês aí, passam ou é preciso ir buscar um por um?

Num ápice, como mandam as regras, a prole do patriarca, procedeu ao atravessamento, não fosse o cívico esticar-lhes os apêndices auditivos. O gajo não devia ser bom de “assoar” e se este era assim, ainda restavam mais três dentro do carro. Não convinha ver toda a equipa em acção.

- Espero não os voltar a ver por aqui hoje e muito menos não quero nenhum de vocês a passar a rua sem ser nas passadeiras, ou vão ter de se ver comigo, entenderam?

Foi remédio santo. Durante o tempo que fui motorista naquela área, a comunidade cigana da zona foi sempre um exemplo de urbanidade no atravessamento das vias de Benfica e raramente se via um dos seus membros parados à entrada das passadeiras, isto se não fosse para proceder ao atravessamento.

Às vezes, a pedagogia de choque pode ser mais efectiva que uma simples sanção pecuniária.

Obrigado Mestre Marques.

O Morcego

Assim que fora dado o alerta, todas as viaturas disponíveis na área se tinham dirigido para o local. A modesta vivenda de uma octogenária estava a ser assaltada e talvez fosse desta que os suspeitos de uma onda de assaltos em residências que assolava a área entre Sete-Rios, Carnide e Benfica fossem finalmente detidos em flagrante. A casa parecia um castelo sitiado. O cenário, digno de rivalizar com a melhor cena de acção da terra do Tio Sam, intimidava quem passava. Quem quer que estivesse lá dentro não teria hipóteses de escapar. O exterior da casa foi percorrido por vários agentes à procura do local por onde se teriam introduzido os meliantes. Portas e janelas estavam trancadas. Nada de sinais de arrombamento, nem um vidro partido sequer. Um dos agentes decidiu-se bater à porta para confirmar se estaria alguém no interior. Havia sempre a possibilidade de ter sido uma chamada falsa, para brincar com a malta. - Oh da casa… há alguém? – Almeida, com o seu semblante de polícia duro, era a pura imagem ainda muito usada em alternativa aos novos métodos pedagogicamente aceites contra petizes inquietos ou relutantes ao cumprimento das regras elementares de “compostura”. O homem metia mesmo respeito. As pancadas na porta mais pareciam um maço de carpinteiro a bater na madeira. Do interior, a resposta do silêncio total. O experiente cívico, deu alguns passos atrás e percorreu a área envolvente da casa com um olhar de ave rapina. - A Central deu alguma indicação mais pormenorizada acerca da ocorrência? – perguntou ele ao colega que se encontrava a seu lado. - Nada. Só disseram que um indivíduo se tinha introduzido para o interior da casa – respondeu o outro. - Merda de brincadeiras – voltou o Almeida enquanto varria a área circundante procurando entre algum dos curiosos que entretanto se aproximavam, sinais que indiciassem estar por ali o autor de uma possível brincadeira. – não será caso para arrombar a porta; não me parece que esteja alguém no interior. Os arvorados dos carros patrulha reuniram-se para decidir o que fazer. Entretanto chegara muita gente curiosa e sedenta de acção; aquele aparato policial prometia acção e eles estavam ali para testemunhar uma cena de “Hill Street” à portuguesa. De entre essa turba de curiosos, sai então uma velhinha, a dona da casa, transportando um saquinho da mercearia, não se apercebendo que a sua modesta casinha era naquele momento uma das mais seguras da cidade. Passou pela assembleia de polícias, cumprimentou-os e apontou a chave à fechadura. - Boa tarde. É a dona da casa, suponho – disse-lhe Almeida, tentando amenizar o seu semblante pesado com um sorriso. - Bom dia filho. Oh meu Deus…é a minha casa, é! … – a cara da idosa era uma máscara de desespero; logo ali as lágrimas serpentearam pelas rugas da sua cara, como se de riachos se tratassem – vão pôr-me fora?!... sempre vai abaixo… ai a minha casinha, que vai ser de mim! - Nada disso, Dona – aliviou de imediato o Almeida – nada disso, esteja descansada. É que disseram que alguém tinha entrado dentro da sua casa, para a roubar. Podemos dar uma espreitadela? Parece que foi falso alarme mas queria tirar dúvidas. - Façam favor. Podem entrar – condescendeu a velhota, aliviada, como se tivesse ouvido na voz dura daquele polícia a música celestial que deve emanar da voz dos anjos. Entrámos todos e percorremos aquela casa, modesta mas bem cuidada pela solitária idosa. A sobriedade das únicas três divisões da residência permitiu concluir que não havia muito que roubar, além de não haver muitos sítios onde alguém se pudesse esconder. Passada revista a todas as dependências, apresentaram-se cumprimentos e desculpas pelo aparato e toda a gente se precipitou para o exterior. Cá fora, a forma descontraída como saíam os polícias fez com que a plateia de curiosos, que mais parecia um “drive-in”, começasse a dispersar, triste por não ter assistido à detenção de um suposto bandido. Que frustração. Contudo, do prédio em construção ali mesmo ao lado, as coisas estavam mais animadas. À laia de 2º balcão, quatro ou cinco operários esbracejavam e apontavam para a casa, vociferando frases que se perdiam no eco das alturas. Estariam defraudados pelo desfecho da cena? Reclamar espectáculos à borla não é coisa muito bem vinda nas hostes policiais. Não fica bem. - Aqueles tipos ali em cima estão a gozar o panorama – atirou o Almeida, pouco dado a mediatismos. - Pois, vimos por causa de uma ocorrência de roubo e ainda acabamos por sair daqui com um acidente de trabalho – respondi, observando um dos trabalhadores que, ignorando os cinco andares que o separavam do solo, insistia em apontar para a casa com bastante insistência e aparato. O Almeida “fervia” com os operários que insistiam no frenesim constante; bolas até parecia que estavam mesmo a provocar. Se algum caísse nas mãos do Almeida, as coisas não seriam agradáveis para o eleito. Foi então que um deles entra para dentro de um balde elevador e o operador da grua fê-lo descer até ao passeio. Pulou para fora e dirigiu-se à força policial com ar grave. Pelo semblante o africano não vinha desafiar a autoridade, antes pelo contrário, a sua face deixava transparecer uma preocupação e horror de quem vira um demónio. - “Sinhô polícia, inda tá ladrão dentro dus casa” – balbuciou o obreiro no seu “criolês” atabalhoado. - “Tás a mangar comigo” ou quê? - replicou o Almeida. - “Virdade, a gente viu ele lá dus cima” – insistiu com firmeza o homem – meteu pelo buraco ali… e não saiu! - apontava para um minúsculo postigo na lateral da casa, que servia de respiradouro da casa de banho. - Jovem, por ali só um rato é que passa – disse o Almeida rasgando um sorriso. - Bem, um rato ou um tipo magro, como eu. Desde que passe a cabeça, o resto passa – alvitrei eu, tirando as medidas ao postigo e imaginando-me a entrar pelo mesmo. - Sempre queria ver – provocou o Guarda Santos, divertido com a situação. Não perdi tempo. Tirei o blusão, tomei balanço e pulei para o postigo. Debrucei-me para o interior e num ápice estava no interior. Passara à justa, mas comprovara a certeza das testemunhas da obra. Agora tínhamos uma dúvida. Havia marcas de pés pelo sítio por onde eu entrara, mas se as portas e janelas estavam fechadas e o presumível assaltante não saíra por ali, onde estaria ele? A malta da obra jurava a pés juntos que o tipo não saíra. Voltámos assim a rebuscar a casa enquanto que a locatária desfiava um rosário de coisas estranhas que se tinham passado nos últimos meses dentro de casa, tais como desaparecimento de bugigangas, comida, objectos fora do lugar, factos que a mesma atribuía a esquecimentos normais da idade. Uma análise mais atenta revelou pegadas de terra que saíam do quarto de banho em direcção à cozinha, terminando junto ao fogão e pareciam pertencer a um par de sapatilhas. - Se não saiu, onde estará o “rato”?... Estranho caso este, digno de análise atenta do perspicaz Varatojo…
As dúvidas ficaram desfeitas. Por mais credibilidade que se desse aos atentos trabalhadores (só alguém muito fora do seu perfeito juízo estaria ali a brincar com a polícia), depois de revolver a casa da velhota, nem uma barata se vira fugir à invasão policial. Até as gavetas e portas da mesa-de-cabeceira foram abertas (seria impossível, mas, com o que já se viu nesta profissão!). Do roupeiro as poucas roupas que vieram para fora, não traziam “brinde” e debaixo do velho sofá da sala, não cabia a mão de uma criança. Raios, seria este um assaltante com dotes de invisibilidade? Não fora a sagrada família, cuidadosamente mantida num altar, no canto do quarto e seria de desconfiar se a senhora não se dedicaria às Ciências do Oculto e algum espírito teria então entrado sem se fazer convidado. - Avozinha, parece que nada tem a temer. Se alguém cá esteve não mexeu em nada e saiu sem que o pessoal da obra se tenha apercebido – disse o Almeida à locatária. - Antes assim, filhos, antes assim – respondeu ela, aliviada mas em tom pouco convincente – mas e se ele volta? Era compreensível o receio da velhota. Aquele local era na realidade bastante isolado e a partir do final da noite, muito pouco movimentado. A pobre criatura nem telefone tinha e se gritasse, mesmo que fosse na rua, só com muita sorte alguém lhe poderia valer. Estava visto que a senhora não teria descanso nos próximos dias e alguns indícios davam a entender que alguém tentara mesmo entrar lá dentro. A situação foi colocada às instâncias superiores que determinou a uma agente feminina que permanecesse em casa com a senhora, durante essa noite e ficou deliberado que os carros da área passariam naquela zona com frequência para se inteirarem da situação. A mulher ficou mais aliviada e logo ali fez questão de oferecer um café ou um chá aos Guardas que por ali passassem. Mais não podia fazer, afirmou ela, como forma singela de agradecimento pela prontidão dos cívicos. Ficou assim combinado.
***** - Maravilha este Frango! - Podem crer, em especial porque há muito que não me sentava para comer desde que ando neste turno. Parece que as ocorrências esperam a hora da “janta”. - Bem, sendo assim, vamos retomar a patrulha. Passamos pela casa da velhota para ver se está tudo bem com ela. Ao sentir a viatura policial parar à porta, a dona da casa e a agente abriram a porta, convidando os polícias a entrar. - Entrem, entrem se fazem o favor. Já jantaram? Aqui a menina vai jantar comigo. Ia agora começar a aquecer a comida. É simples, mas de boa vontade – convidou a velhota. - Obrigados, minha senhora. Nós comemos sempre antes das sete da tarde, quando começa a escurecer. Depois, quase sempre não há tempo. Já cá canta – agradeceu Almeida, dando umas palmadinhas no seu proeminente estômago – viemos só ver se estava tudo bem. Se houver algo de estranho, aqui a nossa colega informa pelo rádio e nós vimos logo. - Mas então têm de tomar um cafezinho. Faço questão – replicou a velhota enquanto ia empurrando os polícias para o interior da casa. O pessoal, não querendo fazer a desfeita à simpática avozinha, lá entrou e esta mandou-os sentar na sala. - Vou só por a água a aquecer e aproveito para pôr a sopa ao lume. Depois de executada esta tarefa, a senhora veio para a sala e lá continuou a tagarelar com os agentes, lamentando-se do isolamento em que ficara desde que a zona das Laranjeiras fora invadida por uma série de empreendimentos habitacionais. Qual não é a nossa surpresa quando, enquanto ouvíamos pacientemente a nossa idosa anfitriã, do interior da cozinha ouve-se um estrondoso ruído de tachos a cair, secundado de um sonoro e “dorido” FODAAA-SE!!.... A reacção foi imediata. Como se o sofá tivesse um dispositivo de ejecção, saltámos todos, precipitando-nos para a cozinha. Ali, junto ao fogão, um velho conhecido nosso, o “Necas do Alto”, estava estatelado no chão, agarrado ao seu pé direito, guinchando de dores. - Não me bata “Sô” guarda… ai o meu pé!... Ai minha mãezinha! Ai o meu pé – gritava o meliante com uma voz misturada de terror e dor. - Anda cá meu “melro” – o Almeida pegou-lhe pelo colarinho e levantou os seus quarenta e poucos quilos como quem levanta um gato do chão – de onde saíste tu meu sacana? Quando entraste? Melhor, por onde entraste tu? A janela da cozinha continuava fechada e o único acesso era através da sala. Era fácil de concluir que aquele tipo tinha ali estado desde sempre. - Onde estavas tu meu safado? Onde estavas escondido? Ainda há pouco saíste da “pildra” e voltaste ao mesmo! Bem que me tinham dito que já tinhas voltado para o Alto dos Moinhos! Mas onde estavas tu meu rafeiro? - Ai o meu pé! Não me bata, ai o meu pé que está a arder!... – continuava o desgraçado, ignorando as perguntas e sacudidelas do portentoso Almeida. Perante tais queixas, não foi difícil de resolver o mistério. Olhámos todos para o pé, depois para a grande cafeteira caída junto ao fogão, o chão, todo molhado com água fumegante e finalmente, reparámos na chaminé, daquelas antigas, com uma caixa de saída volumosa e com aqueles ferros que outrora eram usados para pendurar enchidos. Alguém se aproximou desta e concluiu o óbvio: O Necas entrara na casa e ao aperceber-se da presença da polícia, a sua limitada mas experiente massa encefálica, transmitira a ordem ao seu corpo franzino, para se esconder no seu interior e aguardar o melhor momento para abandonar o local sem problemas. Não contara com aqueles factores que tornam o crime igual a qualquer outra actividade praticada pelo pacato e comum mortal: a imperfeição e o imprevisto. E os imprevistos foram vários; a persistência dos trabalhadores da obra, a vontade de ajudar a pobre senhora, que permitiu a permanência de uma agente junto a ela e por fim, um inconveniente fogão, ligado, com uma panela de sopa e uma cafeteira de água a ferver. Ao sentir o desconforto do calor gerado a seus pés, a um passo de se transformar em presunto fumado, ao tentar sair, mergulhara o seu pé na água em ebulição e a partir daí, terminou a sua tentativa de fuga. O Necas, pulara da chaminé para a panela. A partir desse dia, juntou ao seu “nome de guerra” o justo cognome de “O Morcego”.

O "Presente"



A Madrugada corria calma na área de Benfica. O turno no carro patrulha era maravilhoso quando o rádio vomitava constantemente ocorrências para outras áreas enquanto na zona, as coisas estavam paradisíacas. Quando assim é, há o sentimento de dever cumprido, mas em contrapartida, a rotina alonga as horas muito para além do desejável. Na verdade, quando se tem algo para fazer de mais específico, o tempo voa e no final podemos respirar fundo e dizer, “amanhã há mais”. Seguíamos pela Av. Carolina Michaelis de Vasconcelos, a brisa fresca vinda de Monsanto entrando pelos vidros escancarados, perturbando a calmaria silenciosa que enredava casario e ruas quando de repente o Valente, o chefe da viatura policial, grita para o condutor:

- Pá, pára, está ali um gajo a fazer qualquer coisa.

O carro estacou, sem espalhafato e saímos todos para o exterior, interrogando-nos sobre o que teria visto o nosso camarada.

- O que se passa? O que foi que viste? – perguntei.

- Ali, repara, na porta daquele prédio. Não vês a cabeça de um tipo?

Agachados atrás de um carro estacionado, os três polícias miravam na direcção indicada. Efectivamente, via-se a cabeça de um indivíduo, aparentemente de cócoras, junto à porta de entrada a um prédio. Pé ante pé, evoluímos à laia de cerco, cada um por seu lado, de forma a tornearmos os veículos estacionados e surpreender o indivíduo, que não estaria a fazer coisa boa. Pelo lado que me aproximei, pude vê-lo de imediato. Oh! Ignomínia! O tipo estava estático porque tinha razões para isso. Nem ele se apercebera da patrulha policial, nem estava a roubar nada. Bastou-me olhar para o esgar de esforço (titânico, diga-se de passagem) que o fulano fazia, acompanhado de gemidos abafados por prolongadas flatulências para de imediato perceber que se encontrava em pleno acto de defecação. Grande lata; não contente com fazê-lo em plena via pública, ainda se dava ao luxo de aliviar os seus fétidos fluidos à porta de gente de bem.

- Eh pá! Que é isso, oh companheiro – gritou-lhe instintivamente o Valente perante tal falta de educação e civismo.

Se alguma dificuldade havia em levar avante a sua empresa, após ser assim abordado, com tamanha rudeza e surpresa, ela terminou logo ali, já que as palavras do polícia foram por assim dizer o “empurrãozito” final. O “parto” estava difícil, raios. Ficamos os três estarrecidos a contemplar aquele quadro. Fonseca, um conhecido ébrio do bairro, era o quadro da indignação digna do artista interrompido na concepção da sua obra e ferido em tamanha violação da sua privacidade. Ali estava ele, bamboleando perigosamente o corpo para a frente e para trás, em difícil equilíbrio, já que nestas ocasiões qualquer par de calças, mesmo de verão, é um empecilho, lembrando aquilo que terão sido os últimos momentos do Colosso de Rodes antes da sua derrocada. A custo, arrastou os pés para a frente, evitando destruir a perfumada escultura, mirando-a, como se de uma obra inacabada de Gaudi se tratasse. A bófia tinha-lhe interrompido aquele momento único de inspiração.

- Lindo serviço, sim senhor!

- Oh Senhor Valente… ia lá eu adivinhar que iam aparecer, logo agora!

- Ao menos ainda atinas; reconheces a merda que fizeste. E agora?

- Agora… agora… aí a velha, que limpe – continuou o artista, acenando com a cabeça para a janela da porteira do prédio.

Entretanto, os moradores começavam a subir os estores. Boa! O artista ia ter público e a julgar pelas caras de incómodo, não tinham sido as melgas quem tinha acordado a vizinhança. O quadro estava montado…

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Um dos moradores, decidiu vir cá abaixo. Trazia um ar de justiceiro, preparado para pôr termo ao “sururu” gerado. Na verdade, por mais que se tente ser discreto para com um ébrio, tal coisa torna-se empresa de difícil feitura; além da forma descontrolada como se exprimem, apresentam quase sempre níveis de decibéis incomodativos que em nada abonam em prol da paz e sossego urbanos, em especial à noite.

-Arre que não se pode pregar olho! Raio Srs. Guardas, não se pode resolver uma borracheira com menos barulho? – o homem, talvez devido à indignação do sonho interrompido pela algazarra, estacou na porta da entrada com ar de quem ia aplicar um correctivo a todos, polícias e garrafão.

- Boa-noite. A borracheira resolve-se… o que está à porta é que vai demorar um pouco mais – replicou Valente, olhando para o fétido presente, acabadinho de pisar pelo irritado senhor, que tanto arrebitara a sua altivez, que ficara com o ângulo de visão demasiado elevado para reparar na obra de arte.

Com uma daquelas vontades de rir às bandeiras despregadas, olhámos para o infortunado cidadão, que nem reacção teve para sair do sítio onde estacionara. O garrafão com pernas, esse olhava aterrorizado, não tanto por ver a sua criação ser espezinhada, mas por ver que a coisa ia sobrar para ele. O homem estava lívido de terror e o morador, verde de raiva. Cheguei mesmo a rezar para que o mesmo não investisse contra o “garrafão andante” já que, se ia ser desagradável conduzir este à esquadra com aquele “perfume”, pior seria ter de intervir para separar ambos caso se pusessem à pancada.

- Agora quem limpa esta porcaria toda!? – gritou o homem, prestes a explodir de raiva.

- Quem não é, sei eu – terão pensado todos os presentes (pelo menos eu pensei).

Entretanto surgira já em cena a inquilina do rés-do-chão, porteira do prédio há muitos anos e que perante tal visão ficou indignada.

- Pois, tinha de ser… tinha de sobrar para a desgraçada! Se fosse comigo, limpava esse calhordas – apontava para o embriagado, que cada vez mais via a sua vida a andar para trás – e havia de ser com a língua!

Qualquer pessoa sensata teria desaprovado tal pena a um condenado e claro, tal acto seria impraticável na presença da autoridade. Bolas, o homem não era nenhum animal! Contudo, conhecendo nós o infeliz, não seria crível que o mesmo se dispusesse a arcar as despesas da transferência da sua obra de arte e naquele momento, pô-lo a limpar o átrio da entrada, seria com toda a certeza, permitir que a sua “escultura” se diluísse e espalhasse pelo resto dos degraus à boa maneira abstracta. Surrealista já era aquela cena. Após alguns minutos de conversa, em lugar arejado e contra o vento, claro está, Dona Palmira, a porteira, ouviu atentamente o que poderiam fazer caso pretendessem apresentar denúncia contra o homem, explicando desde logo a condição de quase indigência em que este vivia e por fim lá condescendeu em limpar o degrau logo pela manhã, mas que não queria ver a brincadeira repetida. O azarado residente, que pisara a poia, atirou os chinelos para o contentor do lixo e lá regressou, a praguejar, para casa, com os restantes moradores, para retomarem os seus sonos. O Valente dirigiu-se ao bêbado. Este estava visivelmente aliviado; de umas palmadas dos moradores já se safara e agora, restava ouvir o que a “justiça” policial lhe iria ditar. E esta foi condescendente, com o pivete que exalava, pouca seria a vontade de os tipos da bófia lhe querem tocar. Após uma daquelas lições de moral, bons costumes e moralidade, das que entram a cem e saem a duzentos, claro está, lá mandámos o “garrafão” seguir à sua vida.

- Vai lá à tua vida e vê se vais tomar um banho.

- Vou já, vou já.

- Agora não te esqueças de tornar a fazer o mesmo e que eu te apanhe – lançou-lhe o Valente, em jeito de despedida e aviso – apanhas tudo para dentro dos bolsos

- Só se não puder – respondeu para si mesmo, entre dentes, esquecendo-se talvez que o seu estado etilizado ampliava a sua voz, ou então, pior que isso, convencido que o cheiro era uma couraça defensiva que afastava a vontade de intervir dos cívicos. Quem não gostou foi o Valente. Revoltado, quando pensava ter resolvido a coisa de forma aceitável, nem se importando sequer com a falta de humildade do infractor perante o facto de o ter safo de uma série de chatices, resolveu então entrar em acção com uma decisão digna de Salomão. Dirigiu-se ao porta luvas do carro patrulha, retirou um par de luvas de borracha, agarrou vigorosamente a “asa” do “garrafão” e arrastou-o até junto da sua obra de arte.

- Ai ele é isso? Então, anda cá! Podes começar a limpar…

- Limpo com quê? Com as mãos? E ponho onde, em cima de si? – respondeu o atrevido e mal agradecido homem, ao qual os vapores de álcool deveria estar a toldar novamente o juízo – limpo com?

- Vais agarrar nisso tudo com as mãos, vais guardar dentro dos teus bolsos e vais pôr-te a andar daqui para tua casa, senão…

- Quer ver que me faz apanhá-la com a boca, não?! – insistiu o ébrio, com um riso desafiador.

O Valente, olhou-o então olhos nos olhos, aguentou firme o pivete, e tal foi a intensidade e frieza das suas palavras, que o outro perdeu o sorriso, como se estivera perante a visão de uma aparição.

- Tens dúvidas?...

O tipo, ao qual o Valente só pretendera dar um último susto, perante a sua arrogância e arrojo, tomou-se de tal pânico, que limpou a entrada do prédio, tal como o Agente lhe ordenara, deixando pouco mais que vestígios para a porteira limpar, pela manhã. Seguiu o seu caminho, sem dizer mais uma palavra, com a sua “arte” na algibeira. Qualquer infractor, na posse das suas faculdades mentais normais, teria levado tão a sério uma ordem de um agente da Polícia. Se ainda restavam dúvidas que o álcool faz-nos tomar atitudes impensáveis, esta esmoreceu de vez qualquer laivo dessas dúvidas.

- Viste aquilo? O tipo é doido!...

- Doido não sei, agora que está bêbado, isso está!...

O SERGINHO




É sempre uma sensação boa quando no nosso mister conseguimos atingir os patamares e objectivos a que nos propusemos. O moral é elevado e as coisas parecem rolar sobre carris, esquecem-se pormenores que em situações mais adversas são motivo para deitar abaixo mesmo o mais dedicado dos trabalhadores e ao final de cada dia sentimos que, mesmo que incompreendido, o dever cumprido é sentimento que culmina esse mesmo dia. Naquela manhã, eu era a imagem do polícia realizado, acabado de entrar na Secção de Justiça (SJ) do Comando de Lisboa, uma das prestigiadas subunidades da Polícia da capital e que fazia parte dos sonhos de futuro de uma maioria substancial dos agentes da Corporação. Para além do facto de nas brigadas se actuar à civil e poder-se assim realizar um trabalho continuado e sistemático sobre casos mais complicados de delinquência e crime, ali sentíamo-nos de certa forma na pele dos mais destemidos e perspicazes detectives de série de TV. Era por assim dizer, salvaguardadas as devidas distâncias e realidades, um “Hill Street” à portuguesa. Ao contrário de hoje, a lei de então deixava muito pouco campo de manobra para a investigação criminal no seio das forças de segurança pública, trabalhando estas com base na prevenção, no imediatismo das ocorrências, flagrante delito e pouco mais. Obviamente, as vantagens que tinham (e continuam a ter) os agentes trajando civilmente eram a actuação revestida do factor surpresa escudado na falta da farda a qual tem efeito dissuasor para as actividades ilícitas nada desejável naquele tipo de serviço e a movimentação mais discreta entre a população.

Inicialmente fui convidado para integrar as equipas da SJ como motorista das brigadas o que me dava a possibilidade de rodar pelas muitas equipas que compunham o Departamento e dessa forma rodar por todo o Distrito de Lisboa e apurar os métodos, técnicas e procedimentos policiais que habitualmente não se aplicavam nas tradicionais Esquadras e serviço de patrulha. Depressa fui confrontado (e de que maneira!) com a realidade das mais diversas actividades delituosas mas uma delas, a que alguns apelidam de “arte”, caracterizada pela destreza e método sub-reptício que os “artistas” usam na sua consecução, que é tão simplesmente o furto subtil, praticado por esse esfaimado espécime urbano que ataca bolsos, malas e afins, à laia de parasita protozoário que “alivia” a sua vítima dos haveres pessoais e que todos conhecemos por carteirista (carteiros, na gíria policial), sempre me chamou a atenção.

Ao fim de duas semanas na SJ, já todas as rotinas da viagem casa – trabalho e vice-versa estavam gravadas na minha mente assim como já estavam memorizadas as imagens, nomes e áreas de acção de umas boas dezenas de “carteiros” em actividade na cidade. Entrei no metro na Estação do Colégio Militar e fui-me encafuando por entre a turba de gente que àquela hora se dirigia para a Baixa da cidade. Estava fresco lá fora mas a carruagem fazia lembrar uma imensa sauna, pejada dos mais variados aromas que iam do corrente after-shave barato ao subtil Cardim, passando claro pelos tradicionais e sortidos cheirinhos a sovaco e sulfato peúga sem esquecer o resultado dos alívios irritantes das flatulências de alguns mais descuidados. Bem vistas as coisas sempre era o meio mais rápido de chegar à Baixa e a pituitária lá tinha que sofrer estes apertos em solidariedade com outros igualmente dolorosos de pés, apalpões, esfregadelas, enfim, tudo aquilo que faz parte de uma viagem de metro em hora de ponta. Em cada paragem numa estação era aplicado o velho princípio, típico de todos os metropolitanos, do “cabe sempre mais um” e ao cabo de duas ou três estações já me encontrava literalmente espalmado contra o vidro da porta oposta à entrada, rezando a todos os santos para que o maquinista não tivesse a infeliz ideia de abrir as portas do lado errado. Chego a equacionar a hipótese (meramente académica, eh!eh!) que hoje, com a idade que tenho, posso vangloriar-me da minha falta de barriga, graças ao facto de durante todos estes anos andar metido dentro daquele espartilho colectivo. Na posição incómoda em que se viaja nestas condições, os breves minutos passados dentro daquele cúbico subterrâneo, levam-nos a fazer as coisas mais diversas. Há quem durma, aproveitando o facto de ir enfaixado entre os seus pares e assim repor alguns minutos de descanso perdidos pela necessidade de madrugar, outros dedicam-se à leitura dos diagramas da rede de transportes, miúdos e graúdos deleitam-se com os prazeres de escarafunchar as fossas nasais, fala-se de bola, da vida, apreciam-se os glúteos generosos das meninas dos painéis de publicidade e transferem-se as reacções que elas provocam em reflexos transmitidos às mãos que percorrem, encobertas pelo gentio, os rabiosques das “vizinhas” (quantas vezes “vizinhos”), que ora protestam e assentam umas “latadas” naquele que nem gosta dessas confianças, ou então “manobram” de forma a facilitar o devaneio alheio. Misturado com os sons metálicos da máquina em andamento, um lamento daqui, um ai dali, todos compenetrados lá seguem até ao seu destino onde se precipitam na gare como se de uma lancha de desembarque nas praias da Normandia em 1944 se tratasse.
A dada altura da viagem, alguém se encosta a mim para se desviar da incontornável figura do invisual que a custo tenta evoluir por entre aquela massa compacta de gente. A mole humana, num misto de desagrado e compaixão lá vai dando passagem ao pobre pedinte enquanto o fulano contínua a apertar-me contra o vidro e não alivia a pressão depois de passar o cego. Com a paciência que se exige nestes momentos, tirando partido da minha esguia figura, arranjo forma de me encaixar, ainda mais, de forma a não oferecer o cós das calças (e o seu conteúdo, claro) à possível investida de algum “rebarbado”. Já quase me falta o ar e não há mais nada em que pensar; a viagem nunca mais termina. Mergulho o meu olhar no reflexo do vidro da porta onde vou alapado e observo, de um ponto de vista diferente a floresta de pernas e corpos atrás de mim…

Usava uma gabardina verde-tropa, dessas com bolsos falsos, para aceder mais facilmente aos bolsos do casaco. Através do reflexo do vidro, além do emaranhado de pernas atrás de mim podia ver o ferro que transportava pendendo na sovaqueira. Tentava recordar-me de algo que sabia importante, mas não conseguia saber o que era. Era importante, mas não conseguia trazer à ideia o que me provocava a sensação de ter esquecido de algo, ou de ter algo para fazer nesse dia. Que raio, a carteira também não era, enfim, sono tem destas coisas. O que fosse lembrar-me-ia quando fizesse falta. Envolto nestas cogitações, eis que vislumbro algo que me retirou deste estado de pré-hipnose. Pelo mesmo reflexo do vidro, vejo uma mão marota, com dois dedos em riste, à laia de tenaz a esgueirar-se tal e qual uma serpente para o interior do bolso direito do casaco. Rapidamente contei - uma mão mais outra mão, são duas mãos - as minhas claro as que me amparavam contra o vidro. Ora, salvo alguma transformação tipo divindade da Indochina, aquela terceira mão não era minha, logo estava fora do contexto; quer dizer, no contexto estava, mas não no certo. Arqueei um pouco mais o tronco para facilitar a vida ao insinuante membro enquanto que calmamente, com a mão esquerda peguei no par de algemas novas que tinha à cintura e aguardei que a presa desferisse o ataque final. Não foi preciso esperar muito já que para azar do intruso a única coisa dentro do bolso era um lenço, por sinal limpinho (sorte a dele) e que não lhe devia fazer falta. O ataque ia agora dirigir-se para o bolso interior do casaco e pelo caminho, aquela mão marota tocou em algo frio e rijo. Os dois experientes dedos tactearam a coronha da Browning e pude ver pela cara de surpresa do marmanjo que insistia em encostar-se a mim, que este tomara consciência de ter metido os “garfos” onde não devia. Antes de ter tempo de retirar a mão de dentro da gabardina, num gesto rápido agarrei-lhe o pulso enquanto que lhe rodeava o pulso com uma das algemas. Quando ouviu o “clic” do fecho das pulseiras o larápio ficou lívido. Na sua expressão lia-se claramente a frase merda! … é bófia!.

- Dás um pio aqui dentro e algemo-te ao varão. Depois o resto da malta que faça o que entender – fui-lhe dizendo calmamente, sem alarme e com a discrição que o momento exigia, algemando o outro par das algemas ao meu pulso esquerdo.

- Eh pá, não faça isso sr. Agente, não é preciso tanto – suplicou o meliante.

- Pois, então mantém-te “pianinho” ou levas aqui uma coça que nem sabes a terra de onde és! – voltei em tom sibilino e disfarçando uma amena cavaqueira com ele – sais comigo agora, no Rossio e vais dar um passeio comigo à Rua Capelo.

- Rua Capelo?! – os olhos pareciam os de um besugo, tal o efeito da palavra ouvida – para a Capelo não! Não pode ser para outra?

Pela conversa vi logo que o artista era cliente da casa pelo que olhei atentamente para a sua cara. Pois é. Era o Serginho, discípulo do Brites, o “Treinador” e companheiro nestas andanças do habilidoso Cardoso, o “Chula”.

Chegámos ao Rossio. Antes de sair, retirei a gabardina de forma a tapar as algemas e disse-lhe que se mantivesse junto a mim, não fazendo ondas. O mariola acedeu, consciente que à mais mínima desconfiança de quem seguia em volta, ele seria o primeiro alvo de alguma vítima da sua ou dos seus pares. O melhor era mesmo sair dali de fininho. Passámos em frente ao Nicola, cumprimentei a Dª Guilhermina que enrolou um bom-dia com meia dúzia de castanhas enquanto do outro lado o Ti Ramiro puxava o brilho ao sapato de um cliente, olhando por cima dos óculos, observando atentamente, como sempre, tudo o que se passava em redor da Praça

- Bom dia menino. Leve lá estas castanhinhas para o Sr. e para o seu colega, para aquecerem logo de manhã.

- Obrigado Dª Guilhermina, quanto é? – respondi.

- Um beijinho cá à velhota é quanto chega; isso é lá conversa prá gente – ripostou a simpática idosa.

Seguimos Rua do Carmo acima, ambos lado a lado, escondendo aquela união metálica que acabara de “unir” os nossos destinos, só com uma gabardina pelo meio, a caminho da consumação dessa união no gabinete do piquete.

Entrei pelo edifício com honras de herói. Tinha caçado o Serginho, tirando vantagem do efeito surpresa, claro, mas ali estava eu, com a presa dominada, sentindo-me um caçador regressado de um safari africano. Foi rodeado de colegas mais velhos eu de imediato me deram os parabéns e não pouparam o Serginho a umas bocas que soavam mais a censura que a gozo.

- Havias de cair algum dia! Perdeste faculdades o quê?!... Olha o Serginho foi apanhado na flagra!... És mesmo “To-Tó”, dar a palmada a um “bófia”! O puto novo apanhou o Serginho!...

O meu ego estava do tamanho do mundo. O Serginho era presa difícil de apanhar já que conhecia todo o efectivo policial das redondezas a milhas de distância.

- É sempre assim. São os novos que os apanham. Parabéns Cruz – o Comissário Pereira, Chefe da SJ, alertado para o acontecimento, viera do seu gabinete dar uma espreitadela – Olá Serginho… vi que ganhaste umas pulseiras novas! Diz lá que aí o Sr. Agente não é um tipo porreiro.

- Essas algemas não são da ordem, pois não. São das boas!... – observou o Pacheco – o puto esmerou-se, viram!

- Pois é, aqui o sr. Serginho estreou uma jóia nova! Não é para todos nem todos os dias. Mas já podem acabar com isso e retirar-lhas, antes que ele queira ficar com elas. Toca a fazer o expediente; vamos trabalhar para ver se ainda vai de manhã ao Dr. Juiz - rematou o comandante, homem de acção e comedido em ironias. Com ele, duas bocas chegavam, nada de massacrar. Dizia poucas, mas boas e isso chegava.

De imediato, levanto-me e começo a procurar as chaves das algemas. Raios, tantos bolsos, onde andavam elas?

- Problemas Cruz? Mau! Querem lá ver que o Serginho te “papou” o cabedal! – gracejaram alguns camaradas.

- Vá lá Cruz, desamarra-te do tipo para a gente ver se o pardalito tem alguma coisa com ele.

- Eh pá! Não encontro a porra das chaves. Acho que as deixei em casa! – respondi.

- Ora, deixa lá isso agora abre mas é as pulseiras que estas chaves são diferentes das nossas.

- Pois, esse é o problema – acabara de me lembrar do que me tinha esquecido - Tenho vindo todo o caminho a tentar recordar-me de algo que me esqueci…

- Problema? Que problema?

- As chaves das algemas estão no chaveiro, com as chaves de casa… e a minha mulher não está lá, foi trabalhar.

Aquela união ao Serginho ficou marcada por uma longa espera. O tempo suficiente para o pessoal da brigada ir comigo ao Areeiro, a uma conhecida casa de chaves, para consumar o “divórcio”.